domingo, 8 de junho de 2014
AUTO DA BARCA DO INFERNO
Na peça Auto da Barca do Inferno, Gil Vicente coloca vários personagens numa situação-limite. Todos estão mortos e chegam a um porto onde há duas embarcações: uma é chefiada pelo Anjo, que conduz ao paraíso. A outra, pelo Diabo e seu Companheiro, vai para o inferno. Os personagens se apresentam diante do espectador como em um desfile, ao fim do qual cada um terá de enfrentar seu destino.
Esses personagens não representam indivíduos definidos, mas, sim, tipos sociais. Ou seja, não têm características psicológicas particulares. Servem como espécies de modelo, para exemplificar qual era, segundo Gil Vicente, o comportamento de determinados setores da sociedade da época. Por isso, podem ser denominados personagens alegóricos.
As alegorias são imagens que servem de símbolo a interpretações, como representações de uma situação ou de um setor social. Nessa peça, por exemplo, um fidalgo com um pajem e uma cadeira são uma alegoria para
toda a nobreza ociosa de Portugal.
O autor se inspirou bastante no teatro alegórico medieval, puramente cenográfico, e também nos momos – manifestações populares em que figuras fantasiadas representavam os vícios e as virtudes. Os autos eram representações comuns na Idade Média, em geral de conteúdo satírico ou alegórico. Publicado em 1517, o Auto da Barca do Inferno é, de acordo com o autor, um “auto de moralidade”.
ENREDO
O Fidalgo é o primeiro a aproximar-se dos barcos, acompanhado de um pajem e de uma cadeira, símbolo de sua pretensa nobreza. O Fidalgo dirige-se primeiramente à Barca do Inferno, ainda sem reconhecer seu capitão. Quando enfim o Diabo se apresenta, o Fidalgo recusa-se a entrar no batel (barco) infernal, alegando que se salvaria por deixar na outra vida quem rezasse por ele. O Diabo responde-lhe com ironia:
“Quem reze sempre por ti?...
Hi-hi-hi-hi-hi-hi-hi!…
E tu viveste a teu prazer,
cuidando cá guarecer
(encontrar abrigo, salvação)
porque rezam lá por ti?
Embarca!, ou embarcai!,
que haveis de ir à derradeira,
(final)
mandai meter a cadeira
que assim passou vosso pai”.
Nesse trecho, é possível perceber a fineza da ironia do Diabo – personagem pelo qual fala muitas vezes a voz do autor. Observe, por exemplo, como o Diabo muda o pronome de tratamento de “tu” para “vós” no verso: “Embarca!, ou Embarcai!”, colocando em dúvida a nobreza de seu interlocutor. No último verso do trecho, o Diabo ofende a linhagem do Fidalgo, dizendo que o pai do personagem também teria tido como destino a danação. O Fidalgo encaminha-se então para a barca do paraíso, na qual é duramente reprimido pelo arrais do céu, o Anjo, que o acusa de “tirania” e o manda de volta à barca infernal, para a qual ele se encaminha resignadamente.
O Onzeneiro (agiota) carrega uma bolsa, símbolo de sua ganância. Assim como o Fidalgo e os demais personagens, ele acredita erroneamente em sua salvação. Após travar diálogo com o Diabo, encaminha-se para o batel celeste, do qual é repelido e obrigado a retomar seu destino, ou seja, o inferno.
Esse triplo movimento (Barca do Inferno, Barca do Céu, Barca do Inferno) é seguido pela maioria dos personagens. Por isso, a peça apresenta uma estrutura esquemática, que se disfarça pela inclusão da figura do Parvo, personagem que representa o povo e é colocado assimetricamente entre os condenados.
O Parvo, por ser tolo e inocente, não é condenado, embora utilize uma linguagem chula e muitas vezes ofensiva. Dirige-se ao Diabo da seguinte
forma:
“Furta-cebolas! Hiu! Hiu!
Excomungado das igrejas!
Burrela, cornudo sejas!
(diminutivo de burra,
zombaria, esparrela)
Toma o pão que te caiu,
A mulher que te fugiu
Pera a Ilha da Madeira!
Ratinho da Giesteira,
(trabalhador do campo)
O demo que te pariu!”
Ao Parvo segue-se o Sapateiro, que leva consigo as ferramentas, símbolos de seu ofício e de sua maneira de ganhar dinheiro com a necessidade alheia. Ele espera salvar-se por ter confessado seus pecados e comungado antes de morrer. O Diabo, porém, o condena por sua hipocrisia, que o levava a roubar seus clientes logo depois de assistir às missas.
O Frade carrega armas de combate – um capacete e uma espada – e uma amante, Florença. Um dos personagens mais ridicularizados do auto, ele baila o tordião (dança cortesã) e dá aulas de esgrima diante do Diabo. O Frade acredita que, graças à sua condição de sacerdote, encontrará salvação.
Após ser ironizado pelo Diabo e pelo Parvo, o padre segue o caminho dos demais danados.
Brísida Vaz é uma alcoviteira (dona de prostíbulo) e carrega vários apetrechos: hímens postiços, peças de encantar os homens, artigos de feitiçaria – o que indica que Gil Vicente condenava crendices e superstições populares. Seu destino é a perdição. Ela ainda argumenta, em vão, que salvou mais meninas do que Santa Úrsula. Utilizando linguagem vulgar, chama o Anjo de “barqueiro, mano, meus olhos”.
O Judeu aparece acompanhado de um bode e, por não seguir a fé cristã,
não compreende tudo o que está ocorrendo. Inicialmente, nenhum dos barqueiros deseja levá-lo. O Diabo, por fim, consente em carregá-lo, mas a reboque. Em Portugal, naquela época, estava disseminado um forte anti-semitismo (preconceito contra os judeus), A cena escrita por Gil Vicente expressa essa situação. Cabe aos leitores atuais entendê-la no contexto do período em que foi criada.
TEMPO E ESPAÇO
Os dois personagens que se seguem – o Corregedor e o Procurador – chegam carregados de livros e de processos. São corruptos e falam numa linguagem empolada, cheia de citações em latim, nas quais quase sempre incorrem em erros. Achincalhados pelo Parvo, são logo mandados para a Barca do Inferno, cada vez mais cheia.
O Enforcado também é um condenado, embora esperasse encontrar salvação porque lhe disseram que iria para o céu se abdicasse da vida. Logo percebe que havia sido enganado e acaba aceitando entrar na barca satânica.
O auto se encerra com quatro cavaleiros trazendo uma cruz, o que indica que morreram nas cruzadas, defendendo a fé cristã. Após uma curta resposta ao Diabo (“Quem morre por Jesus Cristo não vai em tal barca como essa!”), encaminham- se à barca celeste.
Na obra, o tempo e o espaço não são definidos. Encontram-se em uma dimensão mítica, às margens do rio da morte, o rio Letes, já que se trata de uma obra alegórica.
Fonte: http://guiadoestudante.abril.com.br/literatura/materia_409106.shtml
Assinar:
Postar comentários (Atom)
Nenhum comentário:
Postar um comentário